Nos últimos anos do feminismo brasileiro, sobretudo no que alega ser radical, criou-se um entendimento de que feministas seriam, obrigatoriamente, ativistas dos direitos infantis. E como acontece com qualquer outro grupo ao qual feministas se aliaram, imediatamente os direitos do outro grupo se tornam “mais importantes” que os direitos das mulheres. Isso atrapalhou na compreensão das mulheres (até daquelas que se alegam ser feministas radicais) sobre integridade física, autonomia corporal e soberania reprodutiva.

Estamos aqui pra reforçar que direitos infantis não são mais importantes que os direitos das mulheres, em nenhuma hipótese.

Tomem por exemplo a luta contra a pedofilia, que é muito justa e relevante. É uma causa que apoiamos, mas não pode ser nossa bandeira principal: ao mesmo tempo em que defende os meninos, ela exclui as mulheres. Por que lutaríamos contra uma violência sexual específica que nos exclui, em vez de lutar pelo fim da violência sexual perpetrada pelos homens? Por que lutaríamos especificamente contra a pornografia infantil, em vez de lutar pelo fim da pornografia?

Queremos que todas fiquem tranquilas a respeito desse assunto, tendo como norte que qualquer pessoa que coloque os direitos de outro grupo acima dos direitos das mulheres não está falando de feminismo, mas de entrismo desse outro grupo. Mulheres são a metade do mundo, é interessante que estejam ocupadas com trabalho de cuidados em vez de estarem atuando em causa própria. Ter essa clareza e saber se priorizar é o que faz com que tantas de nós se afastem da defesa de outros grupos. Mulheres não são sinônimo nem de cuidados, nem de trabalho gratuito.

A violação dos direitos de mulheres e meninas não se dá pela idade, mas pelo sexo feminino.

Então antes do assunto principal vamos reforçar algumas coisas. Mulheres não são crianças. Mulheres têm autonomia para escolher pelo que querem lutar, e isso deve ser respeitado. Muitas mulheres escaparam da maternidade compulsória e não estão interessadas em nada relacionado à infância, o que também deve ser respeitado. Mulheres que não são mães não possuem nenhuma responsabilidade especial a respeito de crianças, menos ainda as que são feministas. O mundo inteiro já espera que mulheres cuidem de crianças, que sejam heterossexuais e que sejam femininas. As mulheres que não estão fazendo essas coisas não devem ser cobradas a respeito delas.

As mulheres que não têm ligação com maternidade e infância e aquelas que falam que não querem cuidar de crianças, que evitam espaços com crianças etc., estão dizendo com todas as letras que não têm interesse em menores de idade. Elas não estão lutando contra um profundo desejo de violação ou buscando crianças para abusar, não querem hormonizar crianças, violá-las, atrapalhar seu desenvolvimento, castrá-las, mantê-las na adolescência, dar a elas informações erradas ou torná-las cobaias. A maioria está dizendo apenas “não quero cuidar de crianças”. Causa estranheza que isso seja polêmico! Esperamos que as ideias de não se relacionar com homens ou de não praticar a feminilidade não seja polêmica entre aquelas que se dizem feministas…

Chama atenção a facilidade em exigir das mulheres organizadas coisas que não são exigidas nem de homens nem de grupos mistos. Não parece que nenhum outro movimento social seja cobrado da mesma forma para focar na infância, ou em qualquer outro tema não-central.

Apontamos tudo isso sabendo que a infância deve ser defendida por adultos. Dentro do nosso escopo, que são os direitos das mulheres e meninas com base no sexo feminino, a WDI também defende direitos específicos da infância. Não defendemos todos os direitos das crianças porque não é nosso foco, mas nos atentamos àqueles ligados às violações geradas pela mentira de que é possível mudar de sexo. Vocês podem ler sobre isso em nossa Declaração, está no artigo 9. No artigo 1 e 2 defendemos ainda que qualquer direito relacionado à maternidade seja exclusivo de mães, que são as mulheres que possuem relações parentais com a prole. A definição por si só já é uma defesa enorme, que não foi sugerida por nenhum grupo anteriormente. Qualquer direito materno que seja defendido precisa passar por essa definição.

Todas as pessoas interessadas em uma defesa mais ampla da infância devem se organizar com esse objetivo. Pais, familiares, educadores, pedagogos, pediatras, assistentes sociais; a lista é grande e inclui os dois sexos. O que ela não inclui compulsoriamente são as feministas que não estão interessadas (ou qualquer outra pessoa que não esteja interessada, sejamos sinceras). Parece óbvio mas é preciso repetir. O costume de abusar da empatia das mulheres se estende àquelas que são feministas.

Queremos reforçar também que a defesa das crianças está perfeitamente harmonizada com o feminismo: defendam a infância todas as que estiverem dispostas a isso. O que não é compatível com o feminismo é colocar a infância acima dos direitos sexuais femininos.

Não estamos falando disso “pelo prazer da polêmica”, mas porque vimos acontecer no mês passado (e acontecerá novamente este mês), com milhares de feministas repetindo acriticamente o bordão “criança não é mãe”. O bordão está correto, uma “criança” é um ser humano de sexo não especificado, o termo relativo à idade e não ao sexo. De partida, metade das crianças não pode mesmo “ser mãe”, posto que são meninos.

Já as meninas que engravidam, todas são vítimas de abuso sexual. Vamos repetir como se alguém não soubesse: os meninos abusados sexualmente não engravidam, portanto não são impedidos de abortar. Engravidar e ser forçada a gestar e parir não é algo que acontece por causa da idade, é uma violação de direitos humanos cuja base é o sexo feminino. Se o aborto sob demanda, livre, gratuito, legal e seguro fosse uma realidade, meninas não seriam forçadas a gestar e parir. A menina de 13 anos que foi estuprada por um conhecido do pai em Goiás e que, descobriu-se este mês, está sendo obrigada a manter a gestação, não teria como ser forçada.

A isca engolida sem pensar de que “criança não é mãe” tirava o sexo feminino do foco e colocava a infância como mais importante porque quem a puxou foi um homem que alega ser uma mulher. É interessante para ele que o foco seja outro: não é que meninas não devam ser mães, é que crianças não devem ser mães. Porque talvez a criança grávida tenha uma outra identidade. Afinal de contas não são só mulheres que engravidam… Vocês conseguem ver o problema da falta de foco?

Com um pouquinho mais de atenção e auto-prioridade, quem sabe não chegamos a algum lugar? Quem sabe a gente se a gente focasse no direito ao aborto sob demanda, para garantir que mulheres e meninas não sejam forçadas a ter filhos de seus estupradores? Aí então podemos nos dedicar a categorizar a violência sexual masculina, que afetou todas essas meninas, como um crime de ódio. Já pensaram no estupro como um crime de ódio dos mesmos moldes do crime de feminicídio? Ocorrido pela certeza que o perpetrador tem da inferioridade feminina?

Então vamos falar de direitos infantis hoje porque a ideia de que a defesa infantil é igual ou mais importante que a defesa dos direitos das mulheres cria desvios que não resolvem nosso problema de invasão e dobram o trabalho. Explicamos: nenhuma de nós concorda com o uso de bloqueadores hormonais em menores de idade para “mudança de sexo” (o que sabemos, é impossível). Se esse uso fosse proibido em todo o mundo seria uma vitória, isso é indiscutível. Mas é preciso entender que esse banimento não resolveria o problema das mulheres e também não resolveria o problema das crianças!

O que resolveria seria proibir a legalização da mentira: as pessoas podem se parecer com o sexo oposto, mas elas não podem usar essa mentira de modo fraudulento, para acessar espaços do sexo oposto. Cotas, esportes, banheiros, amamentação e infância: tudo está protegido quando a mentira primordial é revelada.

Pensem no exemplo daquele professor canadense de tecnologia de produção, Kerry Lemieux. Kerry dizia ter gigantomastia, um crescimento anormal das glândulas mamárias que só acontece com as mulheres. A condição mais ou menos equivalente nos homens é a ginecomastia, e em geral o tamanho preocupante em homens seria equivalente a um peito de tamanho pequeno ou médio em mulheres.

O que aconteceu, na verdade, foi que Kerry mentia ter gigantomastia. Ele usava blusas semitransparentes e próteses de silicone gigantes, com aparência de mais de dez quilos, enquanto dava aulas para adolescentes. Ele também mentia que era uma mulher e que se chamava “Kayla”.

Kerry Lemieux, Pessoa do Sexo Masculino de Autoidentidade Narratória.

Ter a liberdade de mentir ser mulher deu a Kerry segurança o bastante para desfilar seu fetiche (ou um de seus fetiches) no trabalho, um trabalho que exigia movimentação corporal e alguma proximidade com menores de idade.

Eis aí o problema: você gasta tempo trabalhando para proibir que menores de 16 anos se hormonizem (e seria ótimo que fossem proibidos), mas em colégios que englobem várias idades, adolescentes mais velhos e jovens adultos ainda terão acesso a eles nos banheiros, espaços exclusivos etc. A proibição de que menores se hormonizem não impede que um homem alegue ser uma mulher, com o apoio da lei. E se ele alega ser mulher, pode alegar ser mãe. E se pode alegar ser mãe, pode “amamentar” uma criança. Então você, que conseguiu proibir que crianças se hormonizem, começa a trabalhar para que homens sejam proibidos de “amamentar”… E eles inventam outra coisa, ainda mais absurda.

Não é porque nem toda mãe amamenta
que homens tem o direito de fazer isso aí.

É aqui que entra o caso do Kerry: mesmo que você proíba que menores de 18 anos se hormonizem e professores adultos ainda estarão lá, contando como “se sentem mulheres” e exigindo que todos participem de suas mentiras. Você proíbe os professores e… Temos todos os outros lugares, banheiros públicos, clubes, ginásios esportivos.

Todas essas coisas e muitas outras estariam resolvidas se retornássemos à raiz do problema, à mentira original de que é possível mudar de sexo. Se os homens não tivessem apoio legal para mentir que não são do sexo masculino (ou que são do sexo feminino), se o sexo fosse o critério objetivo para a definição de mulheres e homens, como sempre foi.

É impossível proibir a mentira, não há como impedir alguém de mentir. Mas a mentira não deve se tornar normal ou legal. Os adultos e as crianças devem entender ou racionalmente ou pela lei que é impossível mudar de sexo. As pessoas podem crer nessa fantasia, podem tentar encená-la, mas não podem forçar o resto da sociedade a participar dessa fraude.

Por esses motivos, só é possível proteger as crianças protegendo os direitos das mulheres. A mentira de que pode-se mudar de sexo põe mulheres em risco, em primeiro lugar, porque as coloca ao alcance irrestrito dos homens. Coloca o sexo feminino à mercê do sexo masculino em todos os lugares exclusivos. Por extensão, as meninas são postas em risco. Em um segundo momento as crianças são postas em risco porque se tornam cobaias da experimentação médico-farmacológica, mas essa é uma violação de direitos humanos a que qualquer pessoa que mente ser do outro sexo está sujeita. Não é sequer uma violação exclusiva da infância, as crianças não estão sendo escolhidas em colégios e parques e forçadas, elas estão sendo levadas por seus pais, pedindo a eles para participar dos experimentos. Os governos e Estados por todo o mundo estão incentivando e autorizando que isso aconteça.

Também não é nada de novo: há décadas as meninas estão sendo hormonizadas com pílulas anticoncepcionais e ninguém se importa. Mulheres também passam por isso, além de estarem sendo mutiladas através de implantes de silicone, bioplastias, “rejuvenescimento” dos lábios vaginais e todo tipo de procedimento invasivo de beleza. O implante de silicone não é menos grave que a dupla mastectomia e as mulheres dificilmente são forçadas a passar por essas cirurgias. Lembramos disso não para diminuir o peso desses procedimentos, mas para que todo mundo entenda que isso ainda é secundário, que essa preocupação repentina com hormonização só aconteceu com a inclusão de meninos, que também deve ser secundária para feministas. Por que vocês não estão igualmente incomodadas com meninas tomando anticoncepcionais?

Sabrina Boing-Boing, repórter e modelo

As mulheres podem escolher se prejudicar com tratamentos estéticos e podem até validar as mentiras masculinas sobre a mudança de sexo. Mulheres mentindo que são homens e se colocando em risco quando escolhem ir para a prisão masculina estão pondo a si mesmas em risco. Um homem que mente ser mulher e escolhe ir para a prisão feminina põe a todas as presas em risco. Como casta sexual são os homens que nos colocam em risco. São, inclusive, os meninos que devem ser educados para não mentir (ou inventar) ser do outro sexo, para saber que não devem entrar no banheiro das meninas ou exigir um lugar em times femininos, etc. Não nos preocupamos tanto com a saúde e a vida de Jaron Bloshinsky (o jovem adulto que se autoidentifica como Jazz Jennings) como nos preocupamos com aquelas que foram afetadas por sua mentira.

As maiores vítimas são as mulheres e meninas que não querem participar desse teatro e estão sendo forçadas. Que não estão interessadas nessas mentiras, que estão há décadas denunciando essas mentiras, que são perseguidas por falar a verdade.

Você pode achar que a maior e mais importante defesa a ser feita é a defesa de idade. É uma posição possível. Mas isso não se chama feminismo, o nome é ativismo pelos direitos infantis. E não se engane, se você quer parar a mentira de que podemos mudar de sexo, você está errada em focar na infância. Esse é seu direito, claro, assim como é o nosso apontar que não estamos interessadas e que isso é um descarrilamento.

Podemos priorizar o que acharmos melhor, inclusive enxugar gelo. Aí é da escolha de cada uma.

Por que a defesa da infância não é o melhor caminho?
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