Enquanto feministas radicais, estamos acostumadas a levar a discussão a respeito da luta pelos direitos das mulheres aos seus limites. Seja pelo desconforto causado por certos temas, seja pela nossa clara posição política, como mulheres engajadas em campanha, as discussões que levantamos em sua maioria não são fáceis. Quanto a isso, fazemos o que podemos: esmiuçamos o assunto, usamos metáforas e exemplos, apontamos para documentos e pesquisas que fundamentem o que temos dito.
Não é um trabalho fácil: somos uma organização de voluntárias, autônoma, com número flutuante de membras, mas todas alinhadas em suas posições e comprometidas com os direitos das mulheres. Estamos dedicadas atualmente na produção de conteúdo que possa informar e conscientizar mulheres de que os seus direitos mais básicos estão sob constante ameaça. Além disso, não queremos nos limitar à defesa dos parcos direitos conquistados e buscamos colaborar na luta coletiva para a expansão desses direitos que são, naturalmente, de base sexual, que é a fronteira que nos diferencia dos nossos algozes.
Focadas nesse alvo, produzimos nosso último texto, sobre a importância de priorizar os direitos das mulheres na defesa dos direitos de base sexual. Ele acabou provocando reações inflamadas de todos os tipos. Infelizmente, algumas das questões mais prementes dele, sintetizadas em frases destacadas na postagem do Instagram, parecem não ter sido bem compreendidas, dado que foram totalmente ignoradas nas discussões que se seguiram.
Pode parecer meio besta ou prepotente dizer que as leitoras é que não entenderam a nossa proposta, mas vimos comentários indignados surgindo antes mesmo que houvesse tempo hábil para a leitura proposta. Se algumas delas realmente tivessem lido nosso texto, isso estaria evidente em seus comentários: haveria resposta a argumentos específicos, questionamento quanto a algumas de nossas elaborações, vontade legítima de entender o que estávamos dizendo e algum respeito pelo nosso trabalho… Mas não houve nada disso. Parece, na verdade, haver uma recusa deliberada em aprofundar certos debates e uma persistência em sufocá-los em espaços que se oferecem para realizá-los, como a nossa página.
Ainda vou elaborar melhor as questões postas por algumas dessas reações. Esse, afinal, é um novo texto que busca tentar dar continuidade a um debate que nós mesmas propusemos. Porém, é importante destacar primeiro que o que realmente parece ter causado esse incômodo foi ter mulheres dizendo com todas as letras que não querem ocupar o lugar de cuidado. Isso parece ter sido ultrajante para algumas mulheres que são mães: como assim elas não querem compartilhar comigo os cuidados da maternidade? Onde foi parar a aldeia e a sororidade?
O pronto central do texto foi uma caracterização básica da prática feminista: a prioridade nas mulheres. A frase “os direitos infantis não são mais importantes que os direitos das mulheres, em nenhuma hipótese” deve ter caído como uma bomba para quem não entendeu ainda que o feminismo trata da libertação das mulheres da dominação masculina. Em nenhum momento foi dito que mulheres não devem atuar na proteção da infância, mas que a proteção da infância enfatiza justamente as crianças e não as mulheres, que precisam poder atuar em causa própria se assim o quiserem. Tanto no texto quanto nas nossas respostas às leitoras, enfatizamos que a proteção da infância e a libertação das mulheres não são causas incompatíveis, ainda que diferentes. Também achamos importante esclarecer que o ativismo infantil não é compulsório, nenhum ativismo é. E repetimos sem medo: as mulheres que não querem fazer ativismo infantil não o farão e devem ser respeitadas.
Nossa amiga Anne (@mamatraca) apontou o que chamou de “ponto cego” do feminismo radical, para ela, existiria um desprezo com as mulheres que já se reproduziram. Evidentemente não desprezamos as mães, mas não temos como solucionar suas questões. Para além disso, o tema do nosso texto era outro, e o reembalaram de modo a nos acusar de, ao não priorizar as crianças, relegar as questões das mães ao segundo plano, algo de que o texto nem trata. Como dissemos no texto anterior, nossa posição enquanto organização, no artigo segundo da nossa Declaração, é a de que só mulheres podem ser mães, que esta é uma condição exclusiva das mulheres. Mães estão automaticamente sob os interesses do feminismo, posto que são mulheres e posto que só são mães porque são mulheres.
Outras comentaristas parecem enxergar no feminismo uma ONG ou algum tipo de braço dos serviços públicos oferecidos pelo Estado, e não pelo que ele é: um movimento de mulheres auto organizado. Elas esperam que suas necessidades de mãe estejam asseguradas antes da sua participação em coletivos feministas, e não como resultado de sua própria atuação em conjunto com as mulheres com que ela esteja associada/organizada. Como exemplo tivemos esse comentário falando que coletivos “não se reúnem em espaços que comportem crianças”. Isso não só mostra um desconhecimento enorme das dificuldades que Feministas Radicais enfrentam para planejar encontros, como faz transparecer que as mulheres não participaram da construção coletiva dos encontros.
Elas possuíam expectativas sobre o modo que os encontros de mulheres — talvez justamente por serem de mulheres — deveriam acolher as crianças (que não são o motivo dos encontros), mas essas expectativas não parecem sequer ter sido colocadas para as organizadoras. Além de ignorar, claro, que as mulheres têm o direito de se organizar sem a presença de crianças, e isso serve para qualquer assunto. Elas podem até se reunir para falar de crianças e maternidade sem a presença de crianças, sem que se distraiam com as demandas das crianças, que são sempre urgentes. Todos os seres humanos têm interesse em momentos de socialização com faixas etárias parecidas, seja para a discussão de temas de interesse, seja para diversão; como exemplo temos conferências, práticas esportivas, discotecas, certos bares, salas de cinema com temas impróprios para crianças etc.
A partir desse raciocínio, outras mulheres parecem acreditar que o trabalho de cuidado das crianças é uma obrigação coletiva compulsória e uma forma de a mulher sem filhos provar seu comprometimento com a causa das mulheres, uma vez que os homens não estejam disponíveis para assumir suas responsabilidades. Algumas citaram nominalmente sua expectativa de que outras mulheres, que não têm filhos, cuidassem de crianças ou de que fizessem ativismo relacionado com a infância, como por exemplo ir a uma escola conversar com crianças (??). Essa expectativa é parte do status quo, que coloca que todas as mulheres devem mesmo estar nesse papel, que devem se dedicar, gratuitamente, aos cuidados infantis.
Destacamos abaixo quatro linhas argumentativas que as mulheres usaram na discussão, partindo da crença de que seria absurda a prioridade do movimento das mulheres ser a defesa intransigente dos direitos das mulheres e meninas:
– A de que direitos de mulheres e crianças estariam tão emaranhados que seria impossível estabelecer fronteiras entre eles, o ponto central da crítica da @naymacedo. Aparentemente, se o foco do movimento das mulheres não for as crianças, as mães estão automaticamente excluídas dele — o que não é verdade: esse argumento vai de encontro com o fato de que mulheres são seres autônomos, independentes da vulnerabilidade e da eventual falta de autonomia de suas crias. Muitas mulheres são mães, mas não acreditamos que o papel da maternidade deva ser o todo de suas vidas.
– Derivado do primeiro, a de que mulheres foram meninas, o que por si só justificaria a priorização da infância no movimento das mulheres; nós apelidamos essa linha argumentativa de “o ovo e a galinha”. Mulheres foram meninas e, portanto, isso deveria garantir a prioridade das meninas no movimento justamente porque meninas são vulneráveis; no entanto, justamente pela vulnerabilidade das meninas, só mulheres podem garantir essa proteção. Esse argumento não se sustenta porque a defesa dos direitos das meninas já está garantida pela defesa dos direitos das mulheres. O que está sendo proposto por outras mulheres é uma ampla defesa da infância, e não especificamente uma defesa dos direitos das meninas. Os direitos das meninas são como os direitos das mulheres, de base sexual, e não de base etária.
– A de que a defesa da prioridade das mulheres em seu próprio movimento seria “racista/fascista/classista/igual aos homens que mentem ser mulheres”, ou que isso seria “individualismo” e “egoísmo”.
Qualquer coisa é mais importante que a defesa dos direitos das mulheres para mulheres que não são capazes de se ver como prioridade nem em seu próprio movimento político. Além disso, essas acusações têm mais o intuito de ofender e inviabilizar a discussão, uma vez que as mulheres não explicam nem se dão ao trabalho de argumentar contra a suposta base “racista/fascista/classista/individualista/egoísta” da defesa dos direitos das mulheres.
– A de que todos os movimentos sociais (segundo uma leitora, “desde o MST até a libertação palestina”) priorizam crianças. Movimentos pela infância naturalmente priorizam crianças, afinal é essa a sua função. Outros movimentos podem estabelecer suas próprias prioridades. Mas nenhum outro movimento social é cobrado por isso, só o feminismo.
Independente de concordância ou dissonância na discussão que propusemos naquele texto, o que se vê nos comentários é que as mães têm plena consciência de como são empurradas para a subalternidade. Inspiradas no feminismo radical, elas sabem que são mães porque são mulheres, mas a sua visão de si enquanto mulheres mães ainda prioriza os seus filhos, sendo para elas muito difícil se desvincular desse papel e enxergar a si mesmas como seres autônomos. Durante as discussões, chegamos a ser acusadas de maneira irônica de nos acreditarmos “iluminadas” pela nossa recusa à maternidade, quando na verdade a nossa recusa aos papéis de cuidado só é possível hoje porque, no passado, mulheres tiveram a ousadia de enxergar todas as mulheres, independente de estarem envolvidas na reprodução, como seres humanos.
É bastante perceptível que, até quando fazem defesa das mães, muitas são incapazes de centrar essas mães na sua defesa pelo que elas são e pelo que as possibilita serem mães: a sua condição de mulheres. Várias dessas mulheres, até quando entendem nossa linha de raciocínio e concordam conosco, se colocam à frente dos filhos para que possam melhor servir aos interesses deles. E até quando dizem priorizar meninas, não é por suas necessidades específicas enquanto meninas, as crianças do sexo feminino. A defesa das meninas é uma justificativa para a defesa ampla da infância, e não o contrário. As crianças devem vir primeiro, em segundo lugar a abnegação de suas mães e, em terceiro, a disponibilidade para o cuidado de todas as demais mulheres. As feministas e outras mulheres malvadas, que “têm o privilégio” de não terem filhos não podem simplesmente atuar pelo que sabem ser o primordial e devem ser tuteladas, desencorajadas ou ativamente hostilizadas.