Entre os dias 07 e 11 de novembro, realizou-se, na Argentina, a Conferência Regional sobre a Mulher Latino-americana e Caribenha. Trata-se de um órgão subsidiário da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), principal foro intergovernamental sobre os direitos das mulheres na região. O tema do encontro foi a “sociedade do cuidado”, uma proposta de desenvolvimento sustentável orientada pela “igualdade de gênero”, focada no cuidado das pessoas e da natureza.
Ao tratar “igualdade de gênero” como sinônimo de libertação das mulheres, coloca-se em curso uma agenda potencialmente prejudicial para nós, já que “gênero”, em suas múltiplas acepções, tem sido uma palavra para igualar papéis sexuais a papéis teatrais — ou performance. Ora, as mulheres têm sido responsabilizadas por cuidar na humanidade desde o surgimento do patriarcado, de forma que a construção da tal “sociedade dos cuidados” deve ser feita com a máxima cautela para que não caia sobre nossos ombros, mais uma vez, solucionar todos os problemas do mundo.
Diante desta e outras preocupações, a WDI Argentina, junto a militantes independentes, redigiram um documento endereçado à organização para garantir que os direitos das mulheres sejam garantidos com base em nossa realidade material, isto é, sexual.
Considerações baseadas na CEDAW acerca da XV Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe
A Women’s Declaration International (WDI) é um grupo de voluntárias de todo o mundo dedicadas a proteger os direitos das mulheres baseados em sexo, incluindo acadêmicas, escritoras, organizadoras, jornalistas, ativistas e profissionais da saúde. A Declaração sobre os direitos das mulheres baseados no sexo foi criada pelas fundadoras da WDI para lembrar às nações da necessidade de manter uma linguagem que proteja mulheres e meninas, sobre a base objetiva do sexo e não do “gênero” ou da “identidade de gênero”, e foi assinada até esta data por mais de 32.500 pessoas, de 159 países, em colaboração com 454 organizações. Esta declaração sugere continuar a usar a linguagem acordada na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que a maioria dos países do mundo ratificou, e todos os países da região.
Nós, mulheres organizadas em diversas associações e grupos feministas latino-americanos, endereçamos nossas considerações e recomendações à CEPAL a respeito da XV Conferência Regional da Mulher da América Latina e do Caribe: “A sociedade do cuidado como horizonte de recuperação sustentável com igualdade de gênero”.
Fazemos assim porque, apesar de tê-las enviado ao Fórum Feminista prévio à Conferência, as mesmas não foram atendidas nesse espaço. As organizações civis que compõem este Fórum têm hegemonizado a discussão com o nítido objetivo de neutralizar a noção de cuidado, esvaziando-a de qualquer referência específica à mulher como pessoa do sexo feminino. Tais ONGs e movimentos também ignoraram a categoria “mãe” em seus documentos e introduziram uma terminologia baseada em sentimentos subjetivos e supostos consentimentos livres, o que distorce o marco regulatório da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), o principal instrumento do direito internacional dos direitos humanos, ratificado por todos os países da região e uma referência fundamental para mulheres e meninas.
Nós, com base na CEDAW, queremos expressar nossas considerações sobre a mulher e o Cuidado de acordo com os direitos, garantias, liberdades e proteções específicas reconhecidas por essa Convenção.
A evidência historiográfica nos mostra que a categoria sócio-política de “cuidado/s” tem raízes em análises feministas acerca do trabalho obrigatório e em grande parte não remunerado das mulheres para reproduzir e sustentar a vida de todos, incluindo pessoas dependentes — crianças, pessoas com deficiência, doentes e idosos — e os serviços indiretos necessários para essa reprodução da vida. De acordo com dados apresentados pela OXFAM em todo o mundo, 42% das mulheres não podem ter acesso ao trabalho remunerado por serem responsáveis pelo cuidado da família, contra 6% dos homens na mesma situação1. Nos países periféricos, as mulheres nas áreas rurais passam até 14 horas por dia em trabalhos de cuidado não remunerados. Na nossa região, antes da crise da Covid-19, as mulheres já dedicavam entre 22 e 42 horas semanais às tarefas de reprodução social, situação que se agravou após a pandemia2.
Mulheres e meninas representam mais de três quartos do trabalho não remunerado do mundo e também são a maioria nos setores de trabalho remunerado de cuidado. Dos 75,6 milhões de trabalhadores domésticos no mundo, 91% são mulheres no caso da América Latina e Caribe. Dos trabalhadores domésticos remunerados, 81,2% são informais e carecem de proteção social. Das 5,2 milhões de crianças entre 5 e 14 anos submetidas ao trabalho doméstico e expostas a violência física, psicológica, sexual e outros abusos, quase 60% são meninas3. A precarização e desvalorização do trabalho de cuidado, mesmo quando remunerado, responde à sua relação com as mulheres.
Essas estatísticas evidenciam a persistência de uma estrutura social derivada da divisão sexual do trabalho, que submete mais da metade da população ao trabalho precário de reprodução e sustento da vida. Conseqüentemente, o debate em torno do cuidado deve se concentrar em termos estruturais e baseados em sexo, e na emancipação ou conquista da igualdade substantiva de mulheres e meninas, principalmente empobrecidas e racializadas. Não fazê-lo ou fazê-lo em outros termos implica perpetuar sua desvalorização.
Apesar das evidências empíricas contundentes e das formulações claras sobre os direitos humanos das mulheres, observamos, no entanto, com preocupação a crescente desconexão entre a agenda pública de cuidados proposta por diversas organizações e a agenda específica para as mulheres calcada na CEDAW. Essa desconexão explica porque as categorias “sexo”, “mãe”, “maternidade” ou “função social da maternidade” não aparecem nem uma vez nos documentos do chamado Fórum Feminista Preparatório da XV Conferência Regional da Mulher. Não há recomendação específica sobre políticas públicas voltadas às mães, que têm a primeira relação filial de cuidado com seus filhos e filhas, enquanto abundam as reivindicações identitárias que não dizem respeito ao trabalho de reprodução e sustentação material da vida social, por exemplo, de grupos “não binários” e autopercepções relacionadas.
A importância do papel social das mães, cuja proteção é exigida pela CEDAW, é ignorada tanto pelas organizações do Fórum Feminista quanto por diversos documentos produzidos sobre o tema, que não estão sendo sustentados por uma discussão fundamentada em evidências e na experiência das mulheres no seu papel de mãe. Preocupa-nos a tendência de mercantilizar e terceirizar excessivamente as relações de cuidado direto sem se atentar aos argumentos das ciências biológicas, da pediatria e da psicologia perinatal e infantil sobre a importância do vínculo mãe-filho. O único reconhecimento para as mulheres parece ser a entrada em uma economia de mercado projetada e dirigida por homens.
Somada à ausência da categoria “mãe”, os documentos das organizações que vêm tratando de Cuidado introduzem uma série de inovações linguísticas como “corpos feminizados”, “mulheres e diversidades” ou “mulheres e identidades”, que esvaziam o sentido do sujeito jurídico e político “mulher”. Tais taxonomias tentam minorar 50% da humanidade, equiparando-a a algum estereótipo sexista “feminizado”, a mais um grupo identitário, ou dissociando a unidade biopsicossocial da mulher em “corpos assexuados + sentimentos genéricos ou funções biológicas”. A verdade é que a interferência de critérios subjetivistas na observação empírica e na análise quantificada a partir da variável objetiva “sexo” distorce as informações das quais depende a formulação das políticas públicas de cuidado.
Além disso, temos observado a crescente pressão de alguns grupos — cujo financiamento deveríamos observar mais atentamente — para legitimar e regulamentar a prostituição, diferenciando o que seria o sentimento subjetivo de “escolher” o “trabalho sexual” da situação de exploração da prostituição. Assim, nos deparamos com a falácia que tenta julgar o mesmo ato de mercantilização sexual tanto como trabalho profissional quanto como exploração. Esse tipo de relativismo moral e subjetivismo individualista é hoje a agenda cultural do neoliberalismo e suas economias de “cuidado” sexo-reprodutivas.
Nesse mesmo sentido, o Fórum defende o acesso de todas as pessoas, independentemente do seu “gênero”, às técnicas de reprodução assistida no âmbito das “políticas de cuidado”. A exploração reprodutiva da mulher por meio da mal chamada “maternidade subrogada” é assim introduzida sob o eufemismo de “cuidar” dos compradores de serviços reprodutivos. Nesse sentido, denunciamos que o tráfico de mulheres para fins de exploração reprodutiva e a compra e venda de menores não fazem parte de nossa agenda de cuidados.
Manifestamos também nossa grande preocupação acerca do tema da infância. A classificação denominada “crianças trans” e as consequentes hormonizações e intervenções cirúrgicas em seus corpos, é hoje denunciada em muitas partes do mundo, pelas mesmas pessoas que foram vítimas dos pressupostos ideológicos e anticientíficos transgeneristas. Esses procedimentos abusivos, carentes de comprovação científica e de protocolos de aplicação, instalam-se sob o eufemismo de “cuidado afirmativo” e buscam ser incluídos nas políticas de cuidado, amparados por uma ideologia para a qual os “estereótipos de gênero” são uma “essência íntima”, expressa desde a primeira infância.
Consideramos, portanto, inadmissível e antifeminista que a Conferência das Mulheres e as políticas relativas ao nosso trabalho obrigatório não remunerado para reprodução e a sustentação social sejam colonizadas e instrumentalizadas por agendas ideológicas alheias — por mais lucrativas que sejam para o mercado sexo-reprodutivo —, que nos invisibilizam e agravam a situação social de mulheres, crianças e adolescentes. Por essas razões, concluímos e recomendamos à CEPAL:
Definições
- Se defina com precisão e coerência o conceito de “cuidado”, cuja realidade social amplamente estudada inspirou e sustentou a luta das mulheres, sem banalizar, diluir ou invisibilizar seu trabalho. Isso significa eliminar a discriminação baseada no sexo e proteger a maternidade como cuidado de primeira importância.
- Se nomeie e se descreva exaustivamente o sujeito político afetado pelas medidas e ações relacionadas ao cuidado, e a base objetiva e verificável de sua discriminação em relação à reprodução social baseada na divisão sexual do trabalho. Ou seja, as mulheres e aqueles que são servidos hoje por seu trabalho reprodutivo desvalorizado.
- Se evite a intrusão de categorias individuais autodeclaradas, bem como de critérios subjetivistas e relativistas que distorcem e deturpam as demandas históricas das mulheres enquanto pessoas do sexo feminino, e das mães enquanto mulheres.
Políticas
- Se elabore políticas de cuidado com base em pesquisas objetivas e evidências científicas. Os métodos de análise devem considerar sexo, raça/etnia, classe etc., através de pesquisas de uso do tempo.
- Se garanta políticas de igualdade substantiva e medidas temporárias especiais destinadas a solucionar a falta de oportunidades e a autonomia econômica, pessoal e política das mulheres, tradicionalmente relegadas e pouco valorizadas no trabalho de reprodução social.
- Se garanta o atendimento aos segmentos da população cuidados majoritariamente por mulheres, nomeadamente, crianças, idosos, deficientes, pessoas com deficiência e impedimentos temporários.
- Se implementem as Recomendações Gerais do Comitê da CEDAW relacionadas ao trabalho doméstico e não remunerado (RG 16 e 17, 1991).
- Se implementem políticas de educação sexual, prevenção e contracepção sem preconceitos sexistas, promovendo condições que possibilitem às mulheres a decisão de cuidar ou não cuidar.
Maternidade
- Se reconheça a função social da maternidade na reprodução e manutenção da vida e da comunidade de acordo com a CEDAW (Art. 5. b; 11 e 12 a).
- Se reconheça a díade mãe-filho de acordo com suas necessidades específicas de lactação, apego e criação, evidenciadas pela medicina e pela psicologia perinatal e infantil.
- Se reconheça a maternidade na ampla diversidade de suas funções e modelos de família, erradicando estereótipos sexistas, que a subordinam ao papel do pai, e exija-se a responsabilidade comum (com os homens) pelo cuidado das/os filhas/os, das/os idosas/os, das pessoas com deficiência e doentes.
- Se compense economicamente e se valorize socialmente o papel da maternidade para garantir igualdade de oportunidades, acesso a elas, resultados e benefícios nas trajetórias profissionais, técnicas, trabalhistas e previdenciárias.
- Se visibilize e se valorize a ação social de mães, mulheres racializadas, mulheres de baixa renda e mulheres que cuidam de pessoas com deficiência ou outras necessidades específicas, e se desenhe políticas específicas para esses grupos.
- Se garantam as condições materiais, financeiras e de infraestrutura pública para que as mulheres possam exercer a maternidade.
- Se garantam meios e recursos adequados para que as mulheres exerçam a maternidade em plenitude psicológica e emocional. Sejam eliminadas as leis e práticas culturais que restringem o direito das mulheres à maternidade, inclusive as práticas judiciais que as desfavorecem no exercício da guarda de suas filhas e filhos.
- Se garanta um sistema jurídico com abordagem feminista que reconheça a violência sexista, e que valorize a maternidade e o direito a cuidar.
- Sejam criadas medidas de remuneração para as mulheres que se dedicaram ao trabalho não remunerado cuidando de idosos e doentes.
Violência contra mulheres e meninas em contextos de políticas de cuidado
- Se considere a violência machista habitual contra a mulher na formulação de políticas de cuidado, como assédio sexual, estupro, tráfico para fins de exploração na prostituição e na pornografia.
- Se defina a prática da “maternidade subrogada” como uma forma de exploração, tráfico e compra-venda de mulheres e crianças.
- Se reforce o combate ao tráfico para fins de exploração na prostituição e na pornografia como violência contra mulheres e meninas, de acordo com o marco do direito internacional dos direitos humanos, e se abandone o eufemismo trabalho sexual.
- Reparação às mulheres e meninas vítimas de toda violência sexista e prevenção por meio de modelos legislativos que penalizem a demanda e o exercício da violência.
- Se abram espaços de debate sobre igualdade para mulheres verdadeiramente democráticos, horizontais, autônomos e autofinanciados.
Buenos Aires, novembro de 2022
https://www.womensdeclaration.com/es/
1 OXFAM. Not all gaps are created equal: the true value of care work. Disponível em: https://www.oxfam.org/en/not-all-gaps-are-created-equal-true-value-care-work
2 CEPAL. Informes Covid – La pandemia del COVID-19 profundiza la crisis de los cuidados en América Latina y el Caribe. Abril de 2020.
3 ILO. Making decent work a reality for domestic workers. 2021.