Como a mentira virou “verdade”

“A expectativa de vida média dos transmulheres na América Latina é de 35 anos”

Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2015)

A maioria das pessoas que teve algum envolvimento com o feminismo nos últimos 10 anos ouviu alguma versão do “fato” de que homens que alegam ser mulheres têm uma expectativa de vida de 35 anos. Essa mentira foi criada no Brasil. Este artigo vai examinar brevemente os grupos responsáveis, os dados em que eles baseiam suas alegações, as pessoas que ajudaram a espalhar a mentira e outras inverdades.  

Histórico

O Brasil costumava ter dois nomes para homens que diziam ser mulheres. Os transformistas eram imitadores, homens que geralmente cantavam e dançavam imitando mulheres. Eram reconhecidos como artistas e seu objetivo, falando de modo geral, era convencer o público de que eles “eram mulheres” durante o tempo da apresentação. O outro grupo, travestis, era composto majoritariamente de homens prostituídos que às vezes haviam feito modificações corporais. Havia alguma sobreposição entre esses dois grupos, e esperava-se, ou ao menos entendia-se socialmente, que eram grupos de homens gays. 

Atualmente, o transformismo virou “cultura drag”. A palavra travesti ainda é usada para se referir a homens prostituídos, mas é cada vez mais usada para se referir a homens que alegam ser “mulheres”, sejam prostituídos ou não, tenham eles passado ou não por modificações corporais, criando assim um grande grupo através de linguagem e auto-identificação. Quando este artigo menciona travestis, ele se refere especificamente aos homens prostituídos, cuja diminuição da expectativa de vida está relacionada a seu envolvimento com a prostituição.

Antunes, 2013

A fonte exata de onde saíram os “35 anos” é obscura. De acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais), o número vem de um artigo escrito pelo psicólogo Pedro Paulo Sammarco Antunes, em 2013. Porém, o Guia Gay de São Paulo mostrou que esse número foi inventado por Carlos Faustino Firmino de Sousa, que se apresenta como Keila Simpson e é o presidente da ANTRA. Durante uma entrevista concedida a Antunes, Firmino estimou que a expectativa de vida dos travestis era de 35 anos, e o número foi devidamente atribuído a ele quando Antunes publicou o trabalho. 


Em 2018 a ANTRA começou a citar esse número, sob o comando de Jhonison Gurgel Batista (que usa o nome Bruna Benevides) como se a informação tivesse sido fornecida por Antunes; e só parou em 2021 quando o Guia Gay de São Paulo expôs a mentira. Em seu relatório de 2021, a ANTRA escolheu um método diferente e informou que “35 é considerada a expectativa média” de homens que não se auto-identificam como homens, mas não mencionou a fonte nem disse do que seria essa expectativa. Usando estatísticas de homicídio, o relatório produziu alguns números e porcentagens, com faixas etárias variadas, para “provar” suas estatísticas. 

Chama a atenção que o relatório tenha mencionado uma série de médias de idades de diferentes anos: 

2017 – 86% das vítimas tinham entre 16 e 35 anos

2018 – 85% das vítimas tinham entre 17 e 35 anos

2019 – 74% das vítimas tinham entre 15 e 35 anos

2020 – 73% das vítimas tinham entre 15 e 35 anos 

2021 – 81% das vítimas tinham entre 13 e 35 anos 

Parecem números aleatórios, porque as idades iniciais nem sequer são fixas. Jhonison prossegue: “a média entre os cinco anos foi estabelecida em 80% das pessoas com até 35 anos de idade assassinadas”. Naturalmente, “80% das pessoas com até 35 anos” também parece um número aleatório, mas não é assim se o leitor tiver mais informações. E ao que tudo indica, encontramos essas informações, que apresentaremos no próximo tópico. Firmino, Jhonison e a ANTRA não tentaram corrigir essa falsa estatística. Em vez disso, continuaram a repetí-la. A mídia brasileira falhou em investigar a fonte e a falsa estatística foi repetida acriticamente pela Globo, Estadão, CNN e até pelo site de notícias do Senado brasileiro, entre muitos outros veículos. Saindo do Brasil a mentira parece ter se espalhado pelo resto do mundo.

Torturando os números

Firmino provavelmente criou a mentira dos 35 anos, mas não era a única pessoa com desejo de torná-la oficial. Em 2013, a OEA (Organização dos Estados Americanos) apresentou o mesmo número, por meio de dados fornecidos no ano anterior pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos).

A OAS publicou esta planilha mostrando os dados relacionados à violência contra gays, lésbicas, homens bissexuais e pessoas que alegam ser do sexo oposto (ou pessoas que foram consideradas parte de uma dessas categorias), cobrindo alguns países das Américas. Se presumirmos que os dados foram obtidos de forma  ética, o que temos é o seguinte: de Janeiro de 2013 até Março de 2014, 276 pessoas que se auto-identificavam com outro sexo ou que os autores da planilha assim consideraram foram assassinadas em 20 países.         

Após filtragem, temos 207 mortos cujas idades podem ser estabelecidas. Esse número inclui 5 crianças abaixo de 16 anos e 22 adolescentes abaixo de 18 anos. Nenhuma menção de exploração sexual é feita em nenhum momento. Destas 207 pessoas do sexo masculino, 91% tinha até 40 anos; 85.9% tinha até 38 anos e 78.7% tinha até 35 anos. Por razões desconhecidas, este foi o modo com que a OEA apresentou os dados:

“Através do Registro da Violência, as Comissões perceberam que 80% das mulheres trans mortas nas Américas tinham  35 anos de idade ou menos. Isso coincide com a informação que a Comissão recebeu da sociedade civil, que afirma que a expectativa de vida das mulheres trans na América Latina é de 35 anos de idade, o que reflete que muitas morrem como resultado de assassinatos”.    

De novo, os 35 anos foram escolhidos aleatoriamente, por motivos inexplicados. Mais que isso, os 35 anos aparecem em relação a 80% do grupo. A explicação mais provável é que não foi uma descoberta, mas uma decisão, assim como Jhonison decidiu fazer uma média dos dados que acumulou por 5 anos, terminando em 35 mas começando em diferentes idades. O número não é a expectativa de vida de um grupo selecionado de pessoas do sexo masculino, porque essa tabela é apenas uma lista de homicídios, não tem informações sobre outras mortes e agrega dados de 20 países diferentes. Não é sequer a média de idade dessas 207 pessoas, que seria de 28.8 anos. Nenhuma explicação foi dada a respeito de 35 anos ter sido a idade pela qual se decidiram, em vez de 38 ou 40. Mas considerando que “receberam informações”, a OEA talvez tenha procurado por uma confirmação dentro dos seus dados e relacionado à duvidosa informação de 35 anos, reforçando a estatística falsa. Esse é um jogo que qualquer um pode jogar, selecionando subconjuntos de dados.

A falta de confiabilidade geral dos dados é clara. Uma coleção de homicídios não é um “indicador de expectativa de vida” nem um indicador de nada além de uma seleção de quantas pessoas foram mortas numa determinada época, num determinado lugar. No Brasil, a maior parte dos homens nessa categoria são homens prostituídos, não homens que alegam ter uma identidade especial. Muitos homens que alegam ser mulheres, no entanto, dizem ser parte do grupo que tem a expectativa de vida de apenas 35 anos, despertando um sentimento de empatia na população, partindo de um dado inventado. 
Um gráfico apresentado pelo IPEA traz informações a respeito de 590.755 homicídios ocorridos no Brasil entre 2010 e 2020. Pode-se ver que a maioria dos homens que morre em situações violentas, morre antes dos 40 anos, com o pico das mortes na casa dos 20 anos. Parece que os homens que negam que são homens estão bem representados nas estatísticas gerais de morte masculinas.

A ANTRA quase entende o problema — mas não exatamente

O relatório de 2021 é caótico e cheio de deturpações, incluindo alegações de que feministas são “nazistas”, links para o blog do autor do relatório e estatísticas falsas. Por exemplo, Jhonison alega existir algo chamado “número internacional da mulher”, que aparentemente seria um número internacional para o qual as mulheres podem telefonar em caso de violência; tal coisa obviamente não existe. Em uma auto-referência, com link para seu próprio Medium, Jhonison denuncia uma aproximação de feministas com o bolsonarismo e o nazismo através da escola do MPU, onde várias mulheres apresentaram suas idéias em 2021 (durante o governo Bolsonaro). O que Jhonison não denuncia, no entanto, é que Firmino também falou na  mesma agência, durante o mesmo governo, em 2019. Jhonison chega ao ponto de afirmar que para cada 100 crimes no Brasil, 90 não são descobertos, num raciocínio de que, por isso, os dados sobre assassinatos de gays, lésbicas e/ou pessoas com auto-identidades seriam maiores; mas o que a fonte informa é que os assassinos não são punidos , não que os crimes não seriam registrados. Em um certo ponto, no entanto, Jhonison quase avança em sua compreensão: ele relata que pelo menos 78% dos mortos de seu relatório mais recente estariam envolvidos com prostituição. A CIDH também informa que a maioria dos travestis vítimas de assassinato de que tiveram notícias em 2013 eram, de fato, prostituídos, e na maioria dos casos os perpetradores pareciam ser seus clientes. Ainda assim esses homens continuam defendendo aquilo que os mata, mata meninos, e, claro, mata mulheres e meninas: o suposto direito dos homens de comprar sexo.

A mentira posta em prática

Na prostituição, os dois pesos e duas medidas ficam evidentes. Por exemplo, em São Paulo, o então prefeito Fernando Haddad lançou em 2015 uma campanha chamada Transcidadania. Tratava-se de um programa de assistência social que doava dinheiro a travestis e homens que reivindicavam identidades especiais para que pudessem continuar seus estudos, como uma rota de fuga da prostituição e/ou da falta de moradia. Não há nenhum programa parecido para mulheres sexualmente exploradas: nenhum abrigo, nenhum tipo de apoio. Como justificar esse programa focado em homens, enquanto as mulheres exploradas são ignoradas? De acordo com Erickson Justino da Silva (que usa o nome Erica Malunguinho e venceu a eleição dos deputados estaduais em SP), um dos motivos é a “expectativa de vida de 35 anos” daqueles que, como Erickson, alegam ser mulheres. Em sua proposta legal, Malunguinho não credita a ANTRA como a fonte desse dado, mas afirma que a fonte é o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e faz um link para o site de notícias do Estado brasileiro, dando à falsa estatística uma fachada mais oficial. Esse programa foi então exportado para outro estado, o Rio Grande do Norte, que o adotou por completo, incluindo os erros gramaticais e aqueles provavelmente derivados de alguma tradução do texto.

Outros exemplos

A Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, escreveu em apoio à Universidade Federal de Lavras (UFLA) após a implementação de cotas para pessoas que alegam ter auto-identidades especiais. A UFABC foi uma das primeiras universidades brasileiras a introduzir essas cotas, e agora, 1 em 3 universidades têm sistemas similares de cotas. Em sua carta, a UFABC menciona a falsa expectativa de vida como uma das razões pela qual cotas para auto-identidade são importantes. 

O Ministério’ Público do Paraná usa os 35 anos para justificar a mudança de nomes e aplicação  do “nome social” para os que alegam ter identidades especiais. 
Estes são exemplos de como uma estatística falsa foi transformada e saltou de informação não verificada para parte da lei. Os erros do Transcidadania Rio Grande do Norte mostram que ninguém sequer revisou o texto para correção gramatical, quanto mais para considerar se ele era razoável. Ninguém está prestando atenção, seja a população, sejam aqueles com responsabilidade e poder administrativo. Todos parecem estar convencidos de que os que alegam ter identidades especiais são as pessoas mais desamparadas da sociedade; e o resultado é que as mulheres, sobretudo as mais vulneráveis, exploradas sexualmente e vítimas de violência, são postas de lado e ignoradas. Um dos meios usados para enganar a todos foi a criação, aceitação acrítica e proliferamento de uma estatística inventada que foi reificada e então referenciada de modo respeitável.

A mentira faz dez anos

A mentira de que homens que alegam ser mulheres têm uma expectativa de vida de 35 anos faz dez anos em 2023. É hora de esclarecer as coisas e expor a falsa estatística pelo que ela é: informação advinda de uma lista de homicídios de 2013, sem qualquer ligação com a expectativa de vida de ninguém.  
Por fim, se homens que alegam ser mulheres são mulheres, se travestis são mulheres igual a todas as outras, então ou a expectativa de vida das mulheres brasileiras está errada, ou a expectativa de vida dos homens brasileiros travestidos está. 

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Esta é uma versão do artigo publicado em inglês pela WDI no livro “Women’s Rights, Genders Wrongs”. O livro é um colaboração internacional entre muitas mulheres contém, além de análises como a do artigo, relatórios sobre os direitos sexuais das mulheres em mais de 30 países. A cópia física pode ser adquirida por aqui.

A expectativa de vida de 35 anos

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