A WDI Brasil geralmente não se ocupa de cotas afirmativas no ensino superior, que não são da nossa alçada porque geralmente não consideram sexo. Não existem cotas para o sexo feminino e nem deviam existir; a primeira divisão de vagas deveria ser sexual, meio a meio. O mesmo deveria servir para cotas na política: ou vai, ou racha. Se essas ideias parecem muito radicais, imaginem outro sistema de ensino em vez de reformas no nosso sistema injusto…

De qualquer modo, mesmo não sendo uma posição da WDI Brasil, as atuais voluntárias são a favor das cotas. Concordamos principalmente com as cotas baseadas em classe social e aquelas para pessoas com deficiência, mas também de cotas raciais e para povos originários. Não somos a favor de cotas para orientação sexual, não conseguimos nem imaginar como a banca de heteroidentificação faria a distribuição das vagas. Se alguém não sabe, uma banca de heteroidentificação (o nome não tem a ver com orientação sexual) serve para identificar se alguém pode ou não se candidatar à determinada vaga, se pertence ou não a determinado grupo. Essa análise evidentemente é mais objetiva e justa com os critérios de classe e deficiência, mas ainda possui alguma objetividade nas cotas raciais e para povos originários.

Essas bancas são importantes para evitar fraude. Muita gente vai lembrar que 20 anos atrás, quando as cotas raciais surgiram no Brasil, a discussão sobre a fraude foi a primeira coisa a ser levantada. E ninguém, absolutamente ninguém, sugeriu que não fosse haver fraude. Ninguém sugeriu que “uma pessoa branca jamais tentaria burlar o sistema”, e todo mundo se perguntou como evitar que alguém se aproveitasse das cotas afirmativas.

De acordo com que a ideia das cotas se espalhou e o tempo passou, acompanhamos diversas situações, como o caso objetivo de Lucas Soares Fontes, o caso subjetivo de Glaucielle da Silva Dias e o caso hilário dos gêmeos Alex e Alan Teixeira.

Esses são casos que não invalidam a necessidade de cotas, até porque é esperado que a banca mais acerte do que erre. Porém, de acordo com a firma de advogados Peterson Escobar, os parâmetros não são claros. Os editais não necessariamente publicam esses critérios, embora exista uma lista de fenótipos a serem observados para afirmar se alguém é, por exemplo, negro ou pardo.

Essa objetividade, que já abre espaço para confusão, não existe para a orientação sexual. Não existe um fenótipo LGB a se observar ou um “gaydar” que possa ser ligado pela banca de heteroidentificação para dizer, sem injustiça, quem é que sente ou não atração por pessoas do mesmo sexo. Isso sem contar que, no que tange comportamento sexual, podemos nos descobrir, nos confundir, nos iludir e mesmo forjar interesse, tanto em pessoas do próprio sexo quanto do sexo oposto. Por mais que se relacionar publicamente com alguém pareça um bom parâmetro, isso não é uma garantia. E buscar comprovação seria, no mínimo, um processo constrangedor.

Além disso, entendemos que a própria cota de classe social deve dar conta desse primeiro momento, que é a entrada na faculdade da pessoa LGB. Uma vez lá, outras ações afirmativas devem ser postas em prática para mitigar possíveis discriminações, bullying etc., contra todos os cotistas, assim como devem ser oferecidas as ações de permanência.

De novo, esse é o nosso entendimento individual, não uma posição da nossa Campanha. Assim como outras mulheres podem vir a participar da WDI Brasil e ter outros entendimentos, a opinião das pessoas que nos seguem também pode ser diferente. Estamos comunicando isso porque gostamos que nossas políticas sejam claras. E no fim das contas, as cotas LGB nem mesmo existem.

É isso mesmo: não existem cotas afirmativas com base em orientação sexual, e até onde nós sabemos, elas não são nem cogitadas. Em 2017 circulou a notícia falsa, que precisou ser desmentida pelo G1, de que tais cotas seriam válidas em concursos.

O que existe é muito mais subjetivo.

Se cotas para orientação sexual já parecem infundadas, imagine cotas para autoidentificação de sexo. Cotas para quem alega pertencer ao outro sexo, ou não ser do próprio sexo, sem que haja nenhum parâmetro objetivo além do que a pessoa alega.🤡 Essas cotas já foram implementadas em 10 universidades do país, sendo que a última foi a UNIFESP, na semana passada.

Embora a pesquisa no Google por “cotas para LGBT” retorne diversos resultados, a orientação sexual não foi considerada. Essa não é uma vitória da comunidade. Não traz nenhuma melhoria para quem é LGB. 🤡 Apenas um grupo foi beneficiado, e ele não tem a ver com orientação sexual.

As cotas são apenas para quem alega ser do sexo oposto, ou não ser do próprio sexo.

É interessante notar que uma banca de heteroidentificação vai contra uma das principais exigências das pessoas que fazem essas alegações, que é a de soberania de autoidentificação. Embora a gente saiba que essa regra não vale para todo mundo, já que essas pessoas frequentemente tiram conclusões sobre os outros (como mostramos no texto anterior com o exemplo de indivíduos que foram postumamente identificados), dessa vez a incoerência tem registro oficial.

Diz o site da UNIFESP¹:

“(…) as pessoas candidatas às vagas reservadas para estudantes trans deverão passar por procedimento de validação de sua autodeclaração como pessoa trans por meio da análise de bancas de heteroidentificação.”

A própria existência da banca de heteroidentificação significa que sim, existe uma expectativa de que as pessoas vão mentir a respeito do próprio sexo, e essa mentira deve ser coibida.

Essa expectativa já foi anunciada por feministas desde os anos 70 e a denúncia continua sendo feita por feministas, mulheres e homens do mundo todo. Mesmo que as alegações de uma suposta incongruência entre o corpo e a mente fossem seríssimas, não haveria como checá-las. 

Do mesmo modo, a existência da banca é a afirmação de que sim, é permitido não acreditar na autodeclaração de sexo. A suposta subjetividade declarada não tem valor frente à deliberação da banca.

Novamente, milhões de feministas, mulheres e homens do mundo todo concordam que não há nada demais em não acreditar em uma autodeclaração sobre o próprio sexo. Uma autodeclaração que negue ou se oponha ao próprio sexo não é soberana, é, na verdade, uma fraude.

O crime de alteração de documentos com informações inverídicas costuma se chamar falsidade ideológica.

A gentileza de análise concedida à banca não só não foi estendida às mulheres que dizem a mesma coisa, como elas também são perseguidas, julgadas, ameaçadas, processadas, etc. Nós sabemos que as pessoas vão mentir a respeito do próprio sexo, e nos preocupamos sobretudo com as mentiras dos homens, que nos colocam em risco direto ou indireto, invadem nossos espaços e se beneficiam de categorias criadas para proteger o sexo feminino.

Se formos considerar o que dizem os ativistas da autoidentidade, a existência da banca também é, por si, só, preconceituosa. Até criminosa, pois viola uma suposta soberania da autoidentidade. Qualquer pessoa que “tenha sua identidade negada” pela banca estará sendo vítima. Como é que uma banca pode analisar os sentimentos profundos de alguém? Como poderão saber “quem a pessoa é de verdade“, senão pela autodeclaração?

Como é que a banca “ousa questionar a identidade” de alguém? 

Além do mais, como os ativistas da autoidentidade acreditam e gostam de dizer, mulheres e homens que alegam ser mulheres são exatamente iguais. De acordo com eles não há diferença alguma e é impossível dizer qual é o sexo de alguém apenas olhando para as pessoas.

É um homem que alega ser mulher ou é uma mulher?
Impossível dizer.

Então quais vão ser os critérios da banca? Roupas e adereços? Estereótipos baseados no sexo (homem gosta de futebol e mulher gosta de maquiagem)? E aqueles que alegam que não são homens nem mulheres?  

Ou a banca legitima todas as identidades com base em autodeclaração ou incorre no suposto preconceito de negar a identidade ao fazer a triagem. É impossível ter as duas coisas.  

Nós já fizemos outras perguntas a respeito desse tipo de cotas, que podem ser vistas aqui.


As mulheres são um grupo definido por ser do sexo feminino, e é isso que as separa dos homens. Todas as outras opressões, classes, desvantagens, características não sexuais, o que for, elas dividem com os homens, que são o outro sexo, o masculino. Nos programas de pós-graduação da UNIFESP, 30% das vagas são para ações afirmativas. Esses 30% são divididos em 2: metade para pessoas negras e quilombolas e a outra metade para pessoas indígenas e com deficiências. Aqueles que pedem autoidentificação de sexo serão incluídos nesse último grupo. Disputarão essas vagas. Então para quem achou que rifar a segurança do sexo feminino era uma boa ideia, vamos parafrasear Bertolt Brecht: “primeiro levaram as mulheres”.

O único modo de coibir a fraude é impedir a autoidentificação de sexo. Infelizmente para as mulheres, e agora para as pessoas indígenas e para aquelas com deficiência (dos dois sexos!), as Universidades parecem mais interessadas em legitimar a mentira.

A fraude é oficial e está legalizada. 

¹ Foi na UNIFESP que aconteceu o primeiro evento focado na saúde do pessoal que diz que tem identidades especiais, organizado pela BRPATH. A BRPATH (Brazilian Professional Association for Transgender Health), por sua vez, é o braço brasileiro da WPATH (World Professional Association for Transgender Health), a organização que outro dia estava classificando castração como uma “identidade” e foi parte de um escândalo ainda em curso em ambos os lados do Atlântico sobre a falta de evidências do que se convencionou chamar de “tratamento afirmativo”. Nós falamos sobre as ligações entre as organizações transativistas brasileiras e a WPATH neste texto aqui.

Cotas para autoidentidade

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